Marx racista: quando a única saída é a desonestidade intelectial

Por Quaark

1 de abril - 2024

Imagem: CNN

Marx é um dos poucos autores que, pela amplitude e importância de sua teoria, é leitura obrigatória para quem deseja conhecer de forma minimamente séria a realidade. Principalmente o contexto capitalista. Não tem como fugir do arcabouço teórico marxiano, nem mesmo seus maiores e mais sinceros críticos, aqueles que não concordam com a ideia de uma revolução comunista, se veem impossibilitados em negar a grandiosidade de Marx.

Obviamente, um autor dessa magnitude não pode escapar de inúmeras críticas, algumas delas muito bem fundamentadas e intelectualmente honestas, já outras nem tanto. No meio dessas críticas, uma que volta e meia reaparece em eventos acadêmicos e grupos de estudo, é a de que Marx era um racista.

Essa crítica, entretanto, não se limita ao campo moral. Ao taxá-lo dessa maneira, seus algozes pretendem invalidar sua teoria. Ora! Para esses críticos entusiasmados, não se admite que nos dias de hoje tenhamos por base uma teoria cujo autor era racista. Mas, afinal de contas, Marx foi realmente um racista?

A principal fonte a qual se recorre para taxar o Mouro de racista são suas cartas, principalmente uma delas, dirigida a Engels em 30 de julho de 1862. No texto em questão Marx é muito literal ao chamar Lassalle de negro, especificamente “negro judeu”. Além disso, Marx faz deboches com relação a genealogia de Lassalle e sua aparência, bem como ao seu comportamento, associando isso ao fato de Lassalle ser um negro.

É válido dizer que muitos marxistas ao longo dos anos, têm se preocupado em refutar tal acusação imputada à Marx, procurando de todos os modos encontrar argumentos que contestem e neguem tal acusação. Tarefa, na verdade, muito difícil de ser realizada.

Indiscutivelmente, é fato, está escrito, documentado etc. Marx usou de forma muito clara expressões que não há como entender de forma diferente se não como expressões racistas. Até é compreensível que alguns marxistas ultrapassam os limites da ciência e admiração intelectual para se tornarem verdadeiros fanáticos por Marx, a ponto de, sem qualquer lógica e plausibilidade, querer contestar algo que é fato, como já dissemos, devidamente documentado.

Entretanto, o que os acusadores de Marx nesse caso esquecem é que, o fundador da teoria por excelência da classe trabalhadora, escreve em 1862. Comparando mal, é como se quiséssemos acusar hoje a Igreja Católica por ser favorável a escravidão em uma sociedade cuja a base produtiva era justamente o trabalho escravo. Numa sociedade assentada sobre o modo de produção escravista, a religião - seja ela qual for - nessa sociedade vai justamente legitimar o trabalho escravo.

O que quero dizer é que, como já deve estar claro, se hoje é inadmissível o uso de expressões racistas direcionadas a alguém, em 1862 não era bem assim. Veja, não estou dizendo que era correto e completamente aceitável essa postura na época de Marx, mas não havia uma consciência socialmente difundida de que o racismo era algo deplorável, devendo ser não só evitado mas também combatido. Eram outros tempos totalmente diferente do nosso nesse aspecto.

Esse é um ponto interessante a ser destacado. Geralmente, ao se estudar um determinado autor e sua obra, de séculos passados, costuma-se levar em conta justamente o tempo em que este produz sua teoria. Isso, entretanto, parece ser negligenciado pelos acusadores de Marx.

Até mesmo no uso de outras expressões como “povos primitivos”, muito utilizada por Marx e que a Antropologia hoje rejeita veementemente, seus acusadores não se atentam para a época em que elas estavam sendo usadas. Quando produziu sua teoria, era assim que, de modo geral, os pensadores se referiam aos povos que ainda não haviam alcançado um certo grau de desenvolvimento e complexificação das suas relações sociais. Era assim que se lia nos materiais que o mouro teve como base para suas pesquisas. Como Marx poderia usar expressões diferentes?

Aqui faz-se necessário um pequeno parêntese. O adjetivo primitivo usado atualmente por muitos marxistas de boa cepa, longe de querer expressar algo atrasado, inferior, significa tão somente povos primeiros, que vieram antes, que foram pioneiros. Isto é, conforme os próprios dicionários. Mas voltemos ao assunto principal.

No caso de Lassalle especificamente, precisamos considerar outro ponto, não como justificativa para tentar desdizer o que está dito por Marx, mas apenas para entendermos melhor o contexto. Marx chamou Lassalle de negro em uma carta pessoal destinada à Engels, e nesse mesmo escrito o filósofo mouro mostra porque está tão irritado com Lassalle. Este, registra Marx, lhe havia sugerido fazer de sua filha uma ‘companheira’ de um indivíduo rico e influente, ou seja, um prostituta. Mesmo considerando diferenças culturais e de época, não é exagero supor que tal proposta pode despertar em um pai uma certa revolta.

Aqui os críticos podem alegar que Marx poderia ter criticado Lassalle sem recorrer ao uso de termos e expressões racistas. Há sempre essa possibilidade, claro. Mas não seria um anacronismo sem tamanho exigir que Marx, naquele seu contexto histórico determinado, agisse conforme as normas sociais de hoje?

Quem acusa Marx de racista precisa considerar o tempo em que o mesmo escreve e ainda, ver no total de sua obra se esse “racismo” a perpassa como característica marcante, ou, como é o caso, se consiste apenas de expressões soltas em cartas pessoais e ainda sob circunstâncias de insulto pessoal.

Importa ainda, nesse caso, analisar se realmente o fato de Marx ter usado expressões racistas anula a qualidade de sua teoria sobre o modo de produção capitalista e seu método inovador. Pois no fundo, para os acusadores de Marx, se trata exatamente disso, querer desvalorizar a sua teoria em função dessas expressões por ele usadas. Algo que parece completamente sem sentido e que, na verdade, presta um deserviço no processo de compreensão e superação da sociabilidade do capital.

O mesmo ataque é feito por esses críticos, de forma extremamente desonesta, ao mencionarem os escritos de Marx sobre a guerra civil norte-americana. Nestas, Marx faz um relato histórico daquela realidade, da forma como os negros são tratados naquele contexto. Mas com o intento de desqualificar o autor, seus críticos transformam esses relatos em uma defesa marxiana da condição na qual os negros viviam.

Caminhando para nossa conclusão, é preciso deixar claro que Marx não era nenhum Deus, pelo contrário, antes de ser um teórico e intelectual invejável, cuja suas ideias chegou a dividir o mundo e até hoje repercutem como nenhuma outra, ele era um ser humano, e como tal, guardava em si todas as imperfeições humanas.

Em geral, não são os marxistas sérios que colocam Marx em um pedestal, são seus críticos que na pressa de criticá-lo a qualquer custo acabam o endeusando, para depois, partindo do pressuposto de que ele era perfeito e que como tal não poderia falhar, lhe acusar, justamente, de ter falhado. Tais críticas, na maioria das vezes, são só por desonestidade intelectual mesmo. Antes fosse por ignorância.

Podemos concluir que Marx usou sim expressões racistas, ele foi racista nessa ocasião contra Lassalle, por exemplo, e deve ter sido em outras também. Porém, é impossível a partir disso afirmar que Marx produziu uma teoria racista, ou que sua teoria é racista. Sempre que em seus textos Marx fala em sentido positivo sobre questões raciais, ele está fazendo um relato histórico e apontando como a classe dominante enxerga a realidade. Nada além disso.

Portanto, da próxima vez que você ouvir falar sobre Marx ou ler algum texto ou livro dele, lembre-se, Marx não era um Deus, e isso não diminui sua teoria, pelo contrário, só afirma sua magnitude e importância, além do seu caráter terreno.